7 de abril de 2025

Chibchacum

۞ ADM Sleipnir



Chibchacum (ou Chichebachuné uma divindade central na mitologia do povo Muisca, uma civilização pré-colombiana que habitava a região do planalto central da atual Colômbia, conhecida como a Savana de Bogotá. Considerado o deus protetor do cacicado do Zipa em Bacatá (atual Bogotá), Chibchacum era venerado principalmente por comerciantes, agricultores e pelas classes populares. 

Segundo a tradição Muisca, Chibchacum era responsável por proteger e sustentar a terra. No entanto, um evento catastrófico levou ao seu confronto com outros deuses e à sua posterior punição. A lenda narra que Huitaca, uma deusa rebelde, em vingança contra Bochica (outra divindade importante dos muiscas), teria corrompido os homens, ensinando-lhes a levar uma vida de libertinagem, rebeldia e desobediência às leis divinas. Esses atos ofenderam profundamente Chibchacum, que decidiu punir o povo com um grande dilúvio, inundando a Savana de Bogotá.

Para causar a inundação, Chibchacum criou ou trouxe de outras regiões dois rios, o Sopó e o Tibitóc. As águas subiram de forma descontrolada, destruindo plantações, matando animais e tornando a região inabitável. Desesperados, os Muiscas clamaram a Bochica por ajuda, oferecendo-lhe sacrifícios, orações e jejuns em seu templo.

Bochica, compadecido com o sofrimento do povo, decidiu intervir. Em um momento dramático, ele apareceu no céu como um arco-íris gigante, segurando uma vara de ouro. Convocou os caciques e seus súditos e, do alto, anunciou que havia ouvido suas súplicas. Ele prometeu aliviar o sofrimento do povo, mas explicou que não secaria completamente os rios, pois eles seriam necessários em tempos de seca. Em vez disso, Bochica usou sua vara de ouro para abrir uma fenda nas montanhas, criando o Salto do Tequendama, por onde as águas escoaram, permitindo que a Savana fosse novamente habitável.

A Punição de Chibchacum

Após o dilúvio, Bochica decidiu punir Chibchacum por sua ira desmedida e por causar tanto sofrimento ao povo. Como castigo, Chibchacum foi condenado a carregar a terra sobre seus ombros para sempre. Antes disso, acreditava-se que a terra era sustentada por quatro grandes pilares de madeira de guaiacão. Agora, o peso do mundo recaía sobre Chibchacum, que se tornou o responsável por sustentá-lo.

Os Muiscas acreditavam que os movimentos sísmicos, como terremotos, ocorriam quando Chibchacum, cansado de carregar a terra em um ombro, a transferia para o outro. Por essa razão, ele também era associado aos terremotos e considerado o deus dos tremores. Apesar de sua punição, Chibchacum continuou a ser reverenciado como protetor dos agricultores e comerciantes, que lhe faziam oferendas em ouro para garantir sua benevolência.



fontes:
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4 de abril de 2025

A Jornada ao Oeste: Capítulo LIII

 ۞ ADM Sleipnir


CAPÍTULO LIII:

O MESTRE ZEN ENGRAVIDA POR OBRA DOS ESPÍRITOS. A DAMA AMARELA PÕE FIM À GRAVIDEZ COM O AUXÍLIO DA ÁGUA.

"Oitocentas vezes devem ser repetidos os atos virtuosos, até que se acumulem três mil méritos ocultos. É preciso tratar igualmente amigos e inimigos, o que é nosso e o que é dos outros. Só então será possível alcançar o primeiro voto (1) do Paraíso Ocidental. Nenhuma arma dos céus, nem a água mais pura, nem o fogo mais inocente podem derrotar o demônio em forma de touro. Apenas Lao-tzu consegue dominá-lo, guiando com um sorriso o búfalo verde pelos caminhos que levam direto ao Céu."

Contávamos que, enquanto caminhavam, os peregrinos ouviram alguém chamá-los. Quem poderia ser? Pois bem, não eram outros senão o deus e o espírito da Montanha do Elmo Dourado. Ambos carregavam nas mãos uma tigela de esmolas dourada e brilhante e, sem parar de andar, gritavam:

— Mestre, esta é a tigela de arroz que o Grande Sábio Sun mendigou para o senhor em um lugar repleto de corações generosos. Se o senhor caiu nas garras daquele monstro, foi porque não deu ouvidos ao conselho que lhe foi dado. Por isso, antes de conseguir libertá-lo, o Grande Sábio teve de suportar muitas dificuldades e passar por inúmeros desafios. Coma deste arroz antes de prosseguir a jornada, e não abuse da piedade filial que o Grande Sábio demonstra por você.

— Agora compreendo o quanto lhe devo — disse Sanzang, voltando-se para o Peregrino. — Nunca poderei agradecer o suficiente por tudo o que fez por nós. Se soubesse o que iria acontecer, não teria abandonado o círculo que traçou e, assim, teria evitado o perigo que quase pôs fim à nossa missão.

— Para ser sincero, mestre — respondeu o Peregrino — se o senhor foi parar no círculo de outro, foi porque não confiou no meu. Quanto sofrimento isso lhe causou! Só de pensar nisso, o meu coração se enche de tristeza.

— O que quer dizer com "círculo de outro"? — perguntou Bajie.

— Quero dizer que o mestre sofreu tanto apenas por causa da sua maldita língua solta! — retrucou o Peregrino. — Tudo o que pude mobilizar no Céu e na Terra — fogo, água, soldados celestiais e até mesmo a areia de mercúrio do próprio Buda — foi devorado por aquele bracelete pálido como o rosto de um fantasma. Mas Tathagata, em sua compaixão, revelou-me por meio dos arhats a verdadeira origem daquele monstro. Assim, pude recorrer a Lao-tzu e pedir que viesse capturá-lo. Afinal, foi o seu búfalo verde que causou todo esse caos.

— Meu querido discípulo — exclamou Sanzang, tomado por uma profunda gratidão — tenha certeza de que, depois de passar por uma experiência tão terrível, nunca mais ignorarei seus conselhos.

Em seguida, dividiram o arroz em quatro partes iguais e começaram a comê-lo. Ele estava tão quente que ainda soltava vapor, mesmo tendo sido preparado há muito tempo.

— Que estranho! — comentou Wukong. — Como ainda está quente assim?

— Assim que soube que o Grande Sábio havia conquistado um mérito tão extraordinário — confessou o espírito local, prostrando-se — eu mesmo decidi aquecê-lo novamente antes de servi-lo.

Em um piscar de olhos, terminaram a refeição e guardaram novamente a tigela de esmolas. Depois de se despedirem do deus da montanha e do espírito local, o mestre montou no cavalo e retomou a jornada. Com a mente livre de preocupações, passaram a seguir totalmente os princípios da sabedoria (2), descansando à beira dos rios e saciando a fome nos salões do vento que os conduzia ao Oeste.

Caminharam sem parar por um longo tempo, até que, mais uma vez, a primavera chegou. Ouvia-se o murmúrio das andorinhas avermelhadas, tão persistentes em seus cantos que só cessavam quando seus bicos já não obedeciam mais. Entre os ramos, os trinados cristalinos das oropêndolas ressoavam no ar por horas a fio. O solo estava coberto de pétalas, parecendo um imenso tecido bordado. A montanha inteira explodia em cores vibrantes. No topo, as ameixeiras  exibiam com orgulho o verde tímido de seus botões recém-abertos, enquanto os cedros, ao longo dos barrancos, pareciam ainda mais vigorosos, segurando entre seus galhos as nuvens errantes. Ao longe, os pastos surgiam envoltos em uma névoa azulada, e as areias brilhavam como gemas sob o calor intenso do sol. Por toda parte, as árvores se enchiam de botões florais e os salgueiros se vestiam de folhas novas. Como poderia ser diferente, se o sol mais uma vez voltava a se aproximar da terra?

Enquanto admiravam a beleza ao redor, depararam-se com um rio não muito largo, de águas cristalinas e frias. O monge Tang puxou as rédeas do cavalo e avistou ao longe um grupo de cabanas com telhados feitos de galhos, erguidas à sombra de salgueiros tão verdes quanto jade.

— Com certeza ali deve morar alguém responsável por atravessar os viajantes para a outra margem — disse o Peregrino, apontando para as cabanas.

— Talvez — respondeu Sanzang —, mas, como não vejo nenhuma balsa, não podemos afirmar com certeza.

— Ei, barqueiro! — gritou Bajie, deixando cair a bagagem no chão. — Traga sua balsa até aqui!

Embora ninguém estivesse à vista, Bajie não se intimidou e continuou gritando. Pouco tempo depois, por entre os salgueiros, surgiu uma balsa, rangendo lastimosamente ao ritmo dos remos. 


Tanto o mestre quanto os seus discípulos observaram atentamente enquanto ela se aproximava da margem. Atrás da embarcação, formava-se uma trilha de espuma, rapidamente dissipada pelas suaves ondulações do rio. A balsa possuía um convés feito de troncos tão uniformes que pareciam tábuas bem lapidadas. No centro, havia uma pequena construção de madeira pintada de verde, presa à proa por um cabo de ferro que também passava por argolas na popa, próximo ao leme. Embora fosse uma embarcação simples, ela era robusta o suficiente para navegar por rios e lagos. Chamava atenção o fato de seus remos serem feitos de cedro e pinho, mesmo sem possuir mastros. Ainda que não fosse capaz de percorrer longas distâncias como os grandes navios celestes, ela era mais do que suficiente para atravessar o rio. Sua única função, afinal, era conectar continuamente as duas margens pelo ponto mais seguro para a travessia.

Assim que chegou à margem do rio, o barqueiro ergueu a voz e anunciou:

— Aproximem-se, se desejam atravessar o rio!

Sanzang esporeou o cavalo e se aproximou para ver melhor quem conduzia a embarcação. Então, observou que o barqueiro usava um turbante de lã na cabeça e calçava sapatos de seda negra. Vestia também uma jaqueta de lã e calças tão remendadas que era impossível dizer de que tecido haviam sido feitas. O mesmo acontecia com a camisa, desalinhada em sua cintura. Apesar da aparência envelhecida, com rugas profundas e olhos sem brilho, seus pulsos eram firmes, e a musculatura revelava a força de um lutador. No entanto, o que mais surpreendeu o mestre foi a voz do barqueiro — suave e melodiosa, como o canto de uma oropêndola. Foi então que percebeu que, na verdade, tratava-se de uma mulher.

Você é a responsável por conduzir esta balsa? — perguntou o Peregrino, aproximando-se.

— Sim — respondeu a mulher.

— Por que não há barqueiros por aqui? — continuou o Peregrino. — Por que são as mulheres que realizam esse trabalho?

A mulher não respondeu. Apenas sorriu e abaixou a prancha para que os passageiros pudessem embarcar. O Monge Sha foi o primeiro a subir, carregando seu cajado sobre os ombros. Em seguida, o mestre e o Peregrino embarcaram, afastando-se para dar passagem a Bajie, que conduzia o cavalo. Assim que todos estavam a bordo, a mulher ergueu a prancha novamente e começou a remar com vigor. Seu movimento era tão firme que, em pouco tempo, já haviam alcançado a margem oposta. Assim que desceu, o mestre pediu ao Monge Sha que abrisse a bolsa e entregasse algumas moedas à mulher. Sem discutir o valor, a , a mulher amarrou o barco a um pilar de madeira junto à água e entrou, aos risos, em uma das cabanas da vila ali perto.

Ao notar a transparência da água, Sanzang sentiu sede e disse a Bajie:

— Pegue a tigela de esmolas e traga um pouco de água para mim.

— Eu mesmo já estava pensando em tomar um gole — respondeu Bajie, enchendo a tigela até a borda e entregando-a ao mestre. O mestre bebeu apenas metade da água, enquanto Bajie tomou tudo de uma vez e o ajudou a montar novamente no cavalo. 

Não havia se passado nem meia hora desde que retomaram a viagem, quando o mestre começou a se queixar de forma lastimosa.

— Meu estômago dói — disse ele, ainda montado.

— O meu também! — exclamou Bajie.

— Deve ter sido a água que vocês beberam — comentou o Monge Sha.

Mal terminou de falar, e Sanzang voltou a gemer:

— Não consigo suportar essa dor!

— Eu também não! — disse Bajie, enquanto se contorcia no chão. — Parece que vou explodir!

Enquanto se queixavam, seus ventres começaram a inchar como bexigas de porco. Dentro deles, formava-se algo semelhante a um coágulo de sangue que crescia sem parar, como um pedaço de carne viva. Quando colocavam a mão sobre a barriga, podiam sentir algo se debatendo e saltando de um lado para o outro, como se houvesse uma criatura selvagem presa em seu interior.

Sanzang já se encontrava muito debilitado quando finalmente avistaram uma aldeia mais adiante. Em um galho de árvore próximo, pendiam dois feixes de feno. Ao vê-los, o Peregrino exclamou:

— Estamos com sorte, mestre! Aquela casa deve ser uma estalagem. Vou até lá e pedirei ao dono um pouco de água quente. Também perguntarei se há alguma farmácia por perto, para que possam aplicar um unguento e aliviar a dor.

Animado por essas palavras, Sanzang esporeou o cavalo, e logo chegaram à aldeia. Ao desmontar, viu, junto ao portão, uma anciã tecendo cânhamo sobre um monte de palha. O Peregrino se aproximou, juntou as palmas das mãos em sinal de respeito e inclinou-se, dizendo:

— Senhora, este humilde monge vem do Grande Reino dos Tang, situado nas Terras do Leste. O mestre a quem sigo tem, de fato, o mesmo sangue do soberano que governa aquelas terras. Infelizmente, ele está gravemente doente, sofrendo de uma terrível dor de estômago, que começou logo após beber um pouco de água do rio que atravessamos mais acima.

— Disse que beberam da água do rio? — perguntou a anciã, esforçando-se para conter o riso.

— Sim — confirmou o Peregrino. — Pegamos um pouco da água do rio que corre a leste daqui.

— Nunca ouvi nada tão engraçado! — exclamou a mulher, soltando uma gargalhada. —Entrem, todos vocês. Preciso lhes contar uma coisa. 

O Peregrino segurou o monge Tang pelo braço, enquanto o Monge Sha fez o mesmo com Bajie. A cada passo, eles soltavam gemidos de dor. Com grande esforço, conseguiram entrar na cabana e se sentaram, sem parar de se queixar. Seus ventres haviam inchado de maneira impressionante, e seus rostos estavam amarelados de tanto sofrimento.

— Por favor, senhora — repetia o Peregrino insistentemente. — Traga um pouco de água quente. Ficaremos muito gratos por isso.

No entanto, em vez de atender ao pedido, a anciã entrou na casa e começou a gritar, ainda rindo às gargalhadas:

— Venham ver isso! Depressa!

Ouviram-se passos apressados e, logo depois, um grupo de mulheres apareceu. Elas fixaram o olhar no monge Tang e se juntaram às risadas estrondosas da anciã. O Peregrino acabou perdendo a paciência e soltou um grito tão poderoso que fez até os alicerces da cabana tremerem. As mulheres se espalharam, assustadas, trombando umas nas outras de maneira cômica. Cerrando os dentes, ele avançou sobre a anciã, agarrou seu braço com firmeza e bradou:

— Traga água quente agora mesmo, e eu pouparei a sua vida!

— Água quente não adiantará para a dor de estômago deles — disse a anciã, tremendo dos pés à cabeça. —  Solte-me, e eu lhe explicarei o que está acontecendo.

Assim que o Peregrino a soltou. ela continuou a falar:

— Este é o Reino das Mulheres de Liang Ocidental (3). Aqui não há um único homem; todas somos mulheres. Foi por isso que ficamos tão animadas ao vê-los. A água que seu mestre bebeu não é das mais comuns, pois pertence ao Rio da Mãe e do Filho. Nos arredores da nossa capital há uma pousada destinada a homens, que fica bem ao lado do Arroio das Gestações. Nenhuma de nós se atreve a beber a água desse rio antes dos vinte anos, pois basta um gole para engravidar. Caso isso aconteça, em três dias a mulher precisa ir até a Pousada dos Homens e se olhar no arroio que passa por lá. Se sua imagem aparecer refletida duas vezes na água, pode ter certeza de que dará à luz um filho. Em outras palavras, se seu mestre realmente bebeu a água do Rio da Mãe e do Filho, então ele está grávido e, com o tempo, dará à luz a uma criança. De que serviria a água quente para aliviar esse mal?

Ao ouvir aquilo, Sanzang empalideceu como cera e, tremendo da cabeça aos pés, perguntou:

— E agora? O que vamos fazer?

— Como poderemos dar à luz se somos homens? — lamentou-se Bajie, abrindo as pernas o máximo que pôde. — E por onde essa criança vai sair, se não temos nem um buraco para isso?

O Peregrino soltou uma gargalhada e disse:

— Como dizem os antigos: "Melões maduros caem por seu próprio peso". Quando chegar a hora, o mais provável é que apareça um buraco na sua costela e o bebê saia tranquilamente por lá.

Ao ouvir isso, Bajie começou a tremer de medo, o que só fez aumentar ainda mais a dor que sentia.

— Não aguento mais! — gritou. — Estou morrendo, estou morrendo!

— Não se contorça tanto! — aconselhou o Monge Sha, soltando uma gargalhada. — Pode acabar enrolando o cordão umbilical e fazer a criança nascer com alguma complicação.

Isso deixou Bajie ainda mais alarmado. Com lágrimas nos olhos, agarrou a roupa do Peregrino e suplicou:

— Peça a essa mulher que vá imediatamente buscar uma parteira experiente. Com certeza deve haver alguma por aqui. As contrações estão ficando cada vez mais intensas. Isso significa que a hora do parto está próxima. O bebê já está chegando!

— Se está prestes a dar à luz — disse o Monge Sha, sem conseguir conter o riso —, o melhor que pode fazer é ficar quieto de vez. Não vai querer romper a bolsa antes da hora, certo?

— Não há nenhum médico por aqui? — perguntou Sanzang à mulher, gemendo sem parar. — Diga aos meus discípulos onde encontrá-lo para que possam ir buscá-lo agora mesmo. Talvez ele tenha algum remédio para interromper esse processo.

— As medicinas não servirão de nada — respondeu a anciã. — Mas, ao sul daqui, há a Montanha da Supressão dos Machos, onde fica a Caverna da Anulação das Crianças. Dentro dela corre o Arroio dos Abortos. Para interromper uma gestação, basta tomar um gole da água desse arroio. O problema é que, hoje em dia, não é nada fácil chegar até lá. No ano passado, apareceu um taoísta chamado Autêntico Imortal Complacente (4) e mudou o nome da caverna para Santuário da Reunião dos Imortais. Como se não bastasse, declarou que a água do arroio pertence exclusivamente a ele e, desde então, se recusa a distribuí-la gratuitamente. Quem quiser um pouco precisa pagar quantias exorbitantes, além de oferecer grandes quantidades de carne, vinho e frutas. Além disso, é necessário inclinar-se diante dele com uma reverência digna dos próprios deuses. Só então ele se digna a entregar uma quantidade ínfima da água. Pelo que vejo, vocês vivem da caridade. De onde tirariam tanto dinheiro para pagar o que esse imortal exige? O melhor que podem fazer é aceitar a situação e esperar o nascimento da criança.

— Senhora — disse o Peregrino, animado ao ouvir isso —, a que distância fica a Montanha da Supressão dos Machos?

— Ela fica a aproximadamente três mil quilômetros daqui — respondeu a anciã.

— Perfeito! — exclamou o Peregrino. — Não se preocupe mais, mestre. Vou buscar essa água agora mesmo.

Virou-se então para o Monge Sha e ordenou:

— Cuide do mestre. Se essas pessoas tentarem fazer algo contra vocês ou causarem qualquer problema, use sua força para assustá-las. Vou buscar a água.

O Monge Sha assentiu com a cabeça. Então, a anciã pegou uma grande bacia de porcelana, entregou-a ao Peregrino e disse:

— Pegue o máximo de água que puder. Será útil para qualquer imprevisto.

O Peregrino pegou a bacia, saiu da cabana e subiu em uma nuvem. Ao vê-lo partir, a anciã caiu de joelhos e, inclinando-se como se tivesse perdido o juízo, começou a gritar:

— Meu senhor! Esse monge sabe cavalgar pelas nuvens!


Imediatamente, ela correu para chamar as outras mulheres. Em uníssono, todas se ajoelharam diante do monge Tang, tocando respeitosamente o chão com a testa e chamando-o de arhat e bodhisattva. Sem demora, ferveram água e prepararam um pouco de arroz para oferecer aos hóspedes tão ilustres. Por ora, não falaremos mais delas.

Falemos, no entanto, do Grande Sábio Sun. Ansioso para chegar rapidamente ao seu destino, deu um salto impressionante, mas logo se viu diante da imponente cúpula de uma montanha altíssima, que bloqueava seu caminho. Desceu apressado da nuvem e, arregalando os olhos, olhou ao redor, surpreso. A montanha onde se encontrava era, de fato, extraordinária. Por toda parte, estendiam-se vastos tapetes de flores exóticas e campos cobertos por ervas selvagens. Pequenos riachos serpenteavam entre as rochas, brincando como crianças em uma eterna perseguição. Até as nuvens pareciam relaxadas, deslizando suavemente pelos barrancos cobertos de trepadeiras e vinhas. As cúpulas de outras montanhas gêmeas estendiam-se além do horizonte, cobertas por uma vegetação exuberante, onde pássaros entoavam melodias, patos selvagens desfilavam suas plumagens coloridas, cervos bebiam tranquilamente e macacos saltavam de galho em galho. A beleza daquela paisagem fazia parecer que a montanha havia sido esculpida em um biombo de jade, com suas curvas lembrando os cachos de uma magnífica cabeleira. Não era de se admirar que fosse praticamente inacessível aos habitantes deste mundo de sombras. Jovens imortais colhiam ervas medicinais, enquanto a água corria alegremente de pedra em pedra, de maneira despreocupada e relaxante, e lenhadores carregavam feixes pesados de lenha. A beleza daquele local rivalizava com a do monte Tiantai e chegava mesmo a superar a dos três picos do monte Hua.

Enquanto o Grande Sábio contemplava, encantado, o cenário ao seu redor, avistou, na porção sombreada da montanha, uma construção com um pátio nos fundos, onde um cão latia incessantemente. Dirigiu-se até lá e percebeu que se tratava de um lugar encantador. Um pequeno curso d'água atravessava um modesto e elegante ponte, ao lado da qual erguia-se uma casa com telhado de ramos. Próximo à cerca, o cão continuava latindo desesperadamente. Quem morava ali tinha liberdade total para ir aonde quisesse, pois o local era completamente isolado.

O Grande Sábio aproximou-se da porta e avistou um taoísta sentado na grama, de pernas cruzadas. Quando o Peregrino o saudou com um leve inclinar de cabeça, o homem ergueu-se ligeiramente e, retribuindo o gesto, disse:

— De onde vem e qual o motivo de sua visita a este humilde santuário?

— Sou apenas um monge enviado pelo Grande Imperador dos Tang, das Terras do Leste, em busca das escrituras sagradas — respondeu Sun Wukong. — Ao atravessar o Rio da Mãe e do Filho, meu mestre bebeu inadvertidamente de suas águas e agora sofre com o ventre inchado e uma dor insuportável. Os moradores da região disseram que esse tipo de gestação não tem cura. No entanto, mencionaram que a única forma de interrompê-la é com a água do Arroio dos Abortos, que se encontra dentro da Caverna da Anulação das Crianças, localizada na Montanha da Supressão dos Machos. Por isso, vim em busca do Autêntico Imortal Complacente, para suplicar-lhe um pouco dessa água e aliviar os sofrimentos do meu mestre. Poderia me dizer onde encontrar esse venerável taoísta?

— Este lugar já foi chamado de Caverna da Anulação das Crianças — respondeu o taoísta, contendo o riso. — Agora, no entanto, é conhecido como Santuário da Reunião dos Imortais. Eu sou o primeiro discípulo do Autêntico Imortal Complacente. Poderia me dizer seu nome? Assim, poderei anunciar sua chegada ao meu mestre.

— Sou o primeiro discípulo de Tang Sanzang, o Mestre da Lei — disse o Peregrino. — Meu nome é Sun Wukong.

— Onde está o dinheiro, o vinho e as outras oferendas? — perguntou o taoísta.


— Vivemos apenas das esmolas que recebemos durante a viagem — respondeu o Peregrino. — Não temos nada disso.

— Está completamente louco! — disse o taoísta, soltando uma gargalhada. — Meu mestre é o dono desse arroio e jamais deu, gratuitamente, uma única gota de sua água a alguém. Volte com as oferendas e eu anuncio sua visita. Caso contrário, é melhor partir e esquecer-se da água para sempre.

— A boa vontade tem mais poder que um decreto imperial — sentenciou o Peregrino. — Se for avisar seu mestre de que o Macaco está aqui, tenho certeza de que ele não será ríspido comigo. Talvez até me ofereça o arroio inteiro.

Diante dessas palavras, o taoísta não teve escolha senão entrar para anunciar a chegada do Peregrino. O Autêntico Imortal estava tocando um alaúde, e o discípulo precisou esperar até que ele concluísse a peça para lhe dizer:

— Mestre, lá fora há um monge budista que se apresenta como Sun Wukong, o primeiro discípulo de Tang Sanzang. Ele deseja um pouco da água do Arroio dos Abortos para curar seu mestre.

Teria sido melhor que o Autêntico Imortal nunca tivesse ouvido essas palavras. Assim que escutou o nome de Wukong, uma chama de ódio se acendeu em seu coração, e a raiva enraizou-se em seu fígado. Num impulso, deixou o alaúde de lado, despiu a túnica que vestia e vestiu suas roupas taoístas. Pegou uma espada gancho e, saindo para a entrada do santuário, gritou:

— Onde está Sun Wukong?

O Peregrino voltou-se e ficou impressionado com a aparência do Autêntico Imortal. Ele usava um gorro de cores vibrantes em forma de estrela, uma túnica vermelha tecida com fios de ouro e sapatos bordados com riqueza de detalhes. Na cintura, trazia um cinto valioso que combinava com as meias de seda bordada e um faldão de lã quase invisível. Em suas mãos, segurava uma espada gancho dourada com uma lâmina afiada e um cabo longo esculpido na forma de um dragão. Seus olhos, semelhantes aos de uma fênix, emanavam um brilho intenso, reforçado por suas desconcertantes sobrancelhas verticais. Seus lábios, vermelhos como sangue, revelavam dentes afiados como lâminas de aço. A cada palavra que proferia, sua longa barba tremulava ao vento, parecendo chamas brotando de seu queixo. Atrás das têmporas, mechões avermelhados de cabelo lembravam juncos selvagens. Sua presença era tão imponente e agressiva que fazia lembrar o marechal Wen (5), embora suas vestimentas fossem distintas.

Assim que o Peregrino o viu, juntou as palmas das mãos e, inclinando-se respeitosamente, disse:

— Este humilde monge é Sun Wukong.

— Você é mesmo o verdadeiro Sun Wukong ou apenas um impostor que tomou seu nome e sobrenome? — questionou o mestre, soltando uma gargalhada.

— É assim que um mestre deve falar? — replicou o Peregrino. — Como diz o provérbio: "Uma pessoa virtuosa não muda de nome ao se sentar, nem de sobrenome ao se levantar". Que motivo eu teria para me passar por outro?

— Você não me reconhece? — perguntou mais uma vez o mestre.

— Desde que decidi mudar de vida e abracei de coração os ensinamentos budistas, tenho me dedicado apenas a escalar montanhas e atravessar rios — respondeu o Peregrino. — Já não mantenho contato com meus amigos da juventude. Além disso, esta é a primeira vez que venho visitá-lo, e juro que nunca antes havia visto seu rosto. Os habitantes da aldeia a oeste do Rio da Mãe e do Filho me disseram que seu nome era o Autêntico Imortal Complacente. Isso é tudo o que sei sobre você.

— Você segue seu caminho tranquilamente, enquanto eu continuo minhas práticas de imortalidade — disse o mestre, com um tom sarcástico. — Então me diga, por que veio realmente me visitar?

— Eu já expliquei — insistiu o Peregrino. — Meu mestre bebeu da água do Rio da Mãe e do Filho e agora sofre com uma dor no estômago que se transformou numa verdadeira gravidez. Vim até sua nobre morada apenas para pedir, em sua generosidade, um pouco da água do Arroio dos Abortos e, assim, aliviar o sofrimento dele.

— Tang Sanzang é seu mestre? — perguntou o Imortal, enquanto seus olhos faiscavam de fúria.

— Sim, ele mesmo — confirmou o Peregrino.

— E, em suas andanças, por acaso não encontrou o Rei Menino Sábio? — continuou o mestre, rangendo os dentes com evidente desprezo.

— Esse é o apelido de um monstro — respondeu o Peregrino —, o Menino Vermelho, que vivia na Caverna da Nuvem de Fogo, perto do Riacho do Pinheiro Seco, na Montanha Uivante. Por que o Autêntico Imortal se interessa por ele?

— Porque ele é meu sobrinho, e o Rei Touro Demônio é meu irmão — esclareceu o mestre. — Há algum tempo, meu irmão mais velho me escreveu uma carta dizendo que Sun Wukong, o primeiro discípulo de Tang Snzang, era um mentiroso que trouxe desgraça para seu filho. Desde então, eu desejava me vingar, mas não sabia onde encontrá-lo. Agora você mesmo vem pessoalmente bater à minha porta. Como espera que eu lhe dê sequer uma gota da minha água?

— Está muito enganado, mestre — disse o Peregrino, rindo, tentando acalmá-lo. — Seu irmão foi um dos meus melhores amigos. Quando jovens, pertencemos à mesma irmandade. Se nunca vim visitá-lo antes, foi porque nem sequer sabia de sua existência. Quanto ao seu sobrinho, ele teve muita sorte, pois agora é nada menos que o servo pessoal da Bodhisattva Guanyin. Tornou-se o Pajem da Riqueza e da Benevolência, e nem mesmo juntos podemos nos comparar a ele.  Por que, então, me responsabilizar por isso?

— Maldito macaco! — bradou o mestre. — Quando aprenderá a segurar essa língua? Como pode achar que meu sobrinho está melhor sendo um criado do que reinando? Deixe de falar bobagens e prove o sabor da minha espada!

— Por favor, não fale com tanta hostilidade — pediu o Grande Sábio, bloqueando o golpe com seu bastão de ferro. — Dê-me um pouco de água, e eu irei embora para nunca mais voltar.

— Não consegue pensar em nada melhor para dizer, macaco inútil? — zombou o mestre. — Se conseguir resistir a três ataques seguidos, lhe darei a água. Caso contrário, o reduzirei a pedaços e vingarei meu sobrinho.

— Como você é tolo! — rebateu o Peregrino, no mesmo tom. — Nem mesmo perceber o que seria melhor para si. Se quer lutar, venha e enfrente meu bastão!

O mestre girou sua espada gancho no ar, e assim teve início, diante do Santuário da Reunião dos Imortais, uma das batalhas mais memoráveis que os tempos já presenciaram. Por ter bebido das águas da procriação, o venerável monge obrigou o Peregrino a buscar o Imortal Complacente. Mas quem poderia imaginar que o Autêntico Imortal, que havia tomado à força o domínio sobre o Arroio dos Abortos, era, na verdade, um monstro? Quando se viram frente a frente, trocaram palavras afiadas como lâminas, sem que nenhum dos dois cedesse sequer um milímetro. Assim se confirmou que as palavras muitas vezes apenas inflamam discórdias, e que ódio e ressentimento não levam a outro destino senão à vingança. Um veio em busca da água para salvar a vida de seu mestre. O outro, acreditando ter perdido seu sobrinho para sempre, recusou-se a entregá-la. Que armas formidáveis empunhavam! A espada gancho possuía a ferocidade de um escorpião, enquanto o bastão de ferro, com suas extremidades douradas, exibia a fúria dos dragões. Com que destreza tentavam perfurar o peito um do outro! Os ataques laterais da espada gancho ameaçavam constantemente as pernas e a cabeça do adversário, como uma louva-a-deus à espreita do bote fatal. O bastão, por sua vez, visava o ventre e os genitais do rival, como um falcão mergulhando sobre sua presa. Moviam-se sem descanso, cada um tentando, sem sucesso, conquistar a vitória. Golpes e fintas se multiplicavam, mas nenhum dos guerreiros cedia.

Mais de dez vezes cruzaram suas armas sem que qualquer um deles demonstrasse fraqueza. No entanto, a partir do décimo primeiro confronto, o taoísta começou a demonstrar sinais de cansaço. Isso inflamou ainda mais a fúria do Peregrino, que ergueu seu bastão e o desceu com toda a força sobre a cabeça do adversário, como uma tempestade de meteoros. Sem alternativa, o mestre fugiu para dentro da montanha, arrastando consigo sua imponente espada gancho. 

Em vez de persegui-lo, o Grande Sábio voltou-se para o santuário, decidido a pegar a água, mas encontrou as portas trancadas. Sem hesitar, agarrou a bacia, tomou impulso e, com um chute poderoso, arrebentou as portas. Correu para dentro e viu o taoísta inclinado sobre o poço de onde jorrava a água, protegendo-o com o próprio corpo. Assim que o Peregrino ergueu seu bastão de ferro sobre a cabeça, o taoísta fugiu apressadamente para os fundos do santuário. 

O Peregrino não teve dificuldades para encontrar um balde, mas, quando estava prestes a lançá-lo no poço, o mestre surgiu repentinamente e o agarrou pelas pernas com a espada gancho. O Grande Sábio perdeu o equilíbrio e caiu de cara no chão. 

No entanto, recuperou-se rapidamente e contra-atacou com seu bastão. O mestre desviou o golpe com um passo ágil para trás e sorriu enigmaticamente antes de declarar:

— Aposto o que quiser que você não conseguirá pegar uma única gota dessa água.

— Venha aqui! — gritou o Peregrino, irado. — Venha, e eu acabarei com você!

Mas o mestre recusou-se a continuar lutando. Permaneceu firme onde estava, determinado a impedir que o Peregrino pegasse a água. Ao perceber isso, o Grande Sábio segurou o bastão com a mão esquerda e, com a direita, puxou a corda do balde. Mal havia dado o primeiro puxão quando o mestre investiu novamente com sua espada gancho. Segurando a barra com apenas uma mão, o Peregrino não conseguiu se defender. O golpe o atingiu nas pernas, derrubando-o ao chão. O balde e a corda caíram dentro do poço.

— Esse sujeito é um verdadeiro monstro! — resmungou o Grande Sábio, levantando-se com um salto.

Agarrando seu bastão com ambas as mãos, desferiu sobre a cabeça do adversário uma verdadeira tempestade de golpes.


Mas o mestre não revidou nenhum deles e fugiu, como havia feito antes. Novamente, o Grande Sábio tentou pegar um pouco de água, mas percebeu que não tinha meios para isso e, além disso, estava certo de que o mestre o impediria novamente.  Isso o fez desistir da empreitada e refletir:

— Preciso buscar ajuda; caso contrário, nunca irei conseguir.


Ele então subiu numa nuvem e voltou rapidamente para a aldeia, gritando em alta voz:

— Monge Sha!

Dentro da cabana, Sanzang e Bajie gemiam sem cessar, incapazes de suportarem a dor. Ao ouvirem os gritos do Peregrino, seus rostos se iluminaram e disseram ao Monge Sha:

— Wukong voltou, não está ouvindo?

— Trouxe a água? — perguntou o Monge Sha, saindo ao seu encontro.

O Grande Sábio entrou na cabana e contou ao monge Tang tudo o que havia acontecido. Ao ouvir o relato, Sanzang começou a chorar e exclamou, desesperado:

— Quando isso tudo vai acabar? 

— Não se preocupe, mestre — respondeu o Peregrino, tentando tranquilizá-lo. — Vim buscar o Monge Sha. Assim, enquanto eu enfrento esse sujeito, ele pegará a água que devolverá a saúde a vocês.

— Mas quem cuidará de nós, se aqueles que estão saudáveis partem e deixam os doentes para trás? — lamentou Sanzang.

— Acalme-se, arhat — interveio a anciã, aproximando-se. — Nesse momento, você não precisa de seus discípulos. Nós cuidaremos de vocês. Quando chegaram, todas nós ficamos encantadas. E ao ver aquele seu discípulo bodhisattva voando sobre uma nuvem, compreendemos que o senhor era alguém divino. Como ousaríamos causar-lhe qualquer mal?

— Que mal poderiam fazer, se aqui só tem mulheres? — zombou o Peregrino.

— Tiveram sorte de vir à minha casa — respondeu a anciã, rindo. — Se tivessem ido a outra, não estariam mais juntos.

— O que quer dizer com essa história de que não estaríamos juntos?  perguntou Bajie, sem parar de se queixar.

— Todas as mulheres nessa família já estão velhas  explicou a anciã, sorrindo. —  Não nos importamos mais com desejos carnais, e por isso, não os machucamos.  Se tivessem batido à porta de outra família, com mulheres mais jovens, elas jamais os deixariam partir. Obrigariam vocês a deitar com elas, e se recusassem, os matariam para fazer saquinhos perfumados com sua carne.

— Nesse caso, eu estaria seguro! — retrucou Bajie, rindo. — Os outros até cheiram bem, e serviriam para fazer saquinhos. Mas eu sou um porco fedorento por natureza! Ninguém iria querer minha carne malcheirosa.


— Só sabe falar bobagens! — repreendeu-o o Peregrino. — Por que não guarda essa energia para a hora do parto?

— Não convém demorar mais — advertiu a anciã. — Vão logo buscar essa água.

—  A senhora tem algum balde em casa? — perguntou o Peregrino. — Vamos precisar de um.

A anciã foi até a parte de trás da casa e trouxe um balde e uma corda para o Monge Sha, entregando-os ao Monge Sha. Ela também entregou-lhe uma corda extra, dizendo:

— É melhor levarem duas cordas. Se o poço for muito fundo, uma só não bastará.

Com o balde e as cordas em mãos, o Monge Sha não teve dificuldade em acompanhar o Grande Sábio. Eles montaram na nuvem e deixaram a aldeia juntos, chegando à Montanha da Supressão dos Machos em menos de meia hora. Após descerem da nuvem, seguiram em direção ao santuário. O Grande Sábio então ordenou ao Monge Sha:

— Pegue o balde e as cordas e se esconda. Enquanto isso, eu irei desafiar aquele taoísta. Quando estivermos completamente envolvidos na luta, entre, pegue a água e saia imediatamente. Entendido?

O Monge Sha acenou com a cabeça em sinal de confirmação e, segurando firmemente o bastão de ferro, o Peregrino se dirigiu até o santuário e começou a gritar:

— Abram as portas imediatamente!

O taoísta que estava de guarda correu para informar seu mestre, dizendo:

— Senhor, aquele tal de Sun Wukong está lá fora novamente!

— Esse maldito macaco é insuportável! — exclamou o mestre, irritado. — Ouvi dizer que ele é um lutador espetacular, e agora posso confirmar que sua bravura não fica atrás de suas técnicas de combate. Aquele bastão de ferro dele é uma arma realmente formidável.

— É possível que as técnicas de combate desse macaco sejam excelentes, mestre  respondeu o taoísta — mas as suas não ficam atrás. Só o senhor é capaz de mantê-lo à distância.

— Mestre — disse o discípulo taoísta — esse macaco pode ter técnicas de combate excelentes, mas as suas não ficam atrás. O senhor é capaz de enfrentá-lo de igual para igual.

— Mesmo assim, já fui forçado a fugir dele duas vezes — replicou o mestre, contrariado.

— Sim, mas foram situações que dependiam apenas da força bruta — ponderou o taoísta. — No entanto, quando ele tentou pegar a água, o senhor o impediu duas vezes com sua espada gancho. Isso equilibra a disputa. E, além disso, ele saiu daqui com o bastão entre as pernas! Se ele voltou, é porque a gravidez de Sanzang deve estar tão avançada que o seu sofrimento já deve estar insuportável. É natural que alguém mude de ideia ao ver seu mestre à beira da morte. Mas desta vez, o senhor sairá vitorioso. 

Ao ouvir essas palavras, o Autêntico Imortal foi tomado por uma profunda alegria, e seu rosto se iluminou com um sorriso. Segurando firmemente sua espada gancho, ele dirigiu-se até a porta e gritou:

— O que o traz de volta aqui, macaco insolente?

— Vim pegar um pouco de água — respondeu o Grande Sábio.

— Muito bem — disse o Autêntico Imortal —, mas essa água vem do meu poço. Para consegui-la, você teria que me oferecer grandes quantidades de carne e licor. Nem príncipes nem reis estão isentos dessa condição. Como ousa aparecer aqui de mãos vazias, ainda mais sendo meu inimigo?

— Então, está se recusando a me dar? — perguntou o Grande Sábio.

— Sim, é isso mesmo! — confirmou o Autêntico Imortal.

— Que tolo você é! — zombou o Grande Sábio. — Já que não está disposto a me fazer esse favor, experimente o sabor do meu bastão!

Com uma facilidade impressionante, o Grande Sábio levantou o bastão acima de sua cabeça e o deixou cair com toda a sua força sobre o Autêntico Imortal, que se esquivou habilidosamente, respondendo com um golpe de sua temível espada gancho. O combate que se seguiu foi ainda mais feroz do que o anterior. O ódio dos combatentes se refletia na velocidade com que os golpes do gancho e do bastão se trocavam. Os dois levantavam tanta terra e areia que o sol e a lua se esconderam, deixando o universo envolto em escuridão. Tudo teve início quando o Grande Sábio foi em busca de um pouco de água para salvar seu mestre e o monstro se recusou a fornecê-la, movido por vingança contra seu sobrinho. Ambos deram o melhor de si para alcançar seus objetivos. Por isso, rangiam os dentes e se diziam palavras de encorajamento, tentando manter todas as suas energias vivas. As nuvens de poeira levantadas colocaram os deuses e os espíritos em alerta, enquanto o choque das armas e os gritos sedentos de sangue faziam toda a cordilheira tremer. Seus golpes criaram um vento furioso que devastou florestas inteiras e chegou a alcançar as estrelas. Quanto mais lutavam, mais felizes e confiantes se sentiam o Grande Sábio e o Autêntico Imortal. Não era em vão que estavam entregues de corpo e alma à batalha, decididos a não parar até que um deles morresse.

Embora a luta tivesse começado na entrada do santuário, aos poucos os combatentes foram descendo a encosta, afastando-se cada vez mais. Por ora, deixemos a batalha de lado e contaremos o que aconteceu com o Monge Sha. Assim que percebeu que o caminho estava livre, ele agarrou o balde e correu para dentro do santuário. Mas, ao entrar, foi interceptado por um taoísta, que se colocou à sua frente e perguntou, furioso:

— Quem é você para se atrever a roubar nossa água?

Sem dizer uma palavra, o Monge Sha deixou o balde cair, puxou seu cajado de matar monstros e o lançou com toda a sua força sobre a cabeça do taoísta. A surpresa impediu que ele reagisse a tempo, e embora tenha conseguido se esquivar, não conseguiu evitar que o golpe lhe destruísse o ombro e o braço esquerdos. O Monge Sha viu-o cair ao chão como uma fruta madura, mas não o matou. Ao passar ao seu lado, limitou-se a insultá-lo, dizendo:

— Eu poderia esmagá-lo, mas, apesar de tudo, você ainda é humano, e me dá pena. Desta vez, pouparei sua vida. Agora, se não se importar, deixe-me passar para pegar a água.

Gemendo de dor, o taoísta se arrastou até os fundos do santuário, clamando ao Céu e à Terra por ajuda. O Monge Sha, por sua vez, jogou o balde no poço e o encheu até a borda. Em seguida, saiu do santuário, subiu em sua nuvem e gritou para o Peregrino:

— Não o mate, irmão! Acabei de pegar a água e vou levá-la imediatamente ao mestre!


Ao ouvir isso, o Grande Sábio aparou um golpe da espada gancho com seu bastão de ferro e, triunfante, declarou:

— Eu ia acabar com você de uma vez por todas, mas, já que não cometeu nenhuma ofensa grave, pouparei sua vida. Não por sua virtude, mas pelos sentimentos que ainda guardo por seu irmão, o Rei Touro. Na primeira vez, você me fez tropeçar duas vezes com essa maldita espada gancho, e eu não pude obter a água. Na segunda, não tive outra escolha senão usar o truque de "atrair o tigre para fora da toca". Ou seja, forcei você a lutar comigo para deixar o caminho livre para um dos meus irmãos. Além disso, saiba que sequer usei toda a minha força contra você; se quisesse, mesmo que se multiplicasse por dez, eu teria acabado com você num piscar de olhos. Sei que é mais valioso poupar uma vida do que tirá-la. Por isso, permitirei que continue existindo por mais alguns anos. Em troca, exijo que, se alguém vier pedir um pouco água, não aja como um funcionário sem escrúpulos, extorquindo as pessoas.


Desorientado, o Imortal Complacente tentou mais uma vez agarrar as pernas do Peregrino, mas o Grande Sábio esquivou-se a tempo e investiu contra ele:

— Não fuja!

O Imortal Complacente foi pego de surpresa e caiu de cabeça no chão, incapaz de se levantar. O Grande Sábio arrancou-lhe a espada gancho das mãos e a quebrou ao meio. Depois, juntou os pedaços e os partiu em quatro partes com a mesma facilidade com que se quebra um galho.

— Junte-os, se puder, besta maldita! — gritou o Peregrino, jogando os pedaços no chão. — Espero que, a partir de agora, seja um pouco mais honesto!


Tremendo dos pés a cabeça, o Imortal Complacente não ousou dizer uma única palavra. O Grande Sábio, por sua vez, soltou uma gargalhada e, montado em sua nuvem, subiu ao céu. Sobre esse episódio, existe um poema que diz:

"Para fundir o chumbo verdadeiro, é preciso a água pura;
Misturada com precisão, ela seca o mercúrio puro.
Nem mercúrio nem chumbo possuem alento materno;
O elixir sagrado se forma de grãos e essências ocultas.
Em vão o menino ostenta um ventre prenhe;
A Mãe Terra acumula méritos com naturalidade.
Quando a heresia se dissipa, a fé verdadeira floresce;
E o Senhor da Mente retorna, com um sorriso radiante."

Montado em sua nuvem sagrada, o Grande Sábio logo alcançou o Monge Sha. Com a água em mãos, estavam tão felizes que retornaram rapidamente ao local de onde haviam partido. Assim que desceram da nuvem, foram direto para a cabana. Na porta, encostado no batente, encontraram Zhu Bajie, gemendo e com a barriga ainda mais inchada do que antes. O Peregrino se aproximou dele e perguntou:

— Já começou o trabalho de parto?

— Não zombe de mim, por favor! — exclamou Bajie, tremendo de medo. — Conseguiram a água?

O Peregrino estava prestes a fazer mais uma piada, mas o Monge Sha, triunfante, abriu um sorriso de herói e anunciou:

— Aqui está a água!

— Quantos problemas lhes causei! — exclamou Sanzang, erguendo-se um pouco e fazendo caretas de dor.

A anciã estava tão encantada que chamou toda a família e, batendo repetidamente a testa no chão, exclamou agradecida:

— Que sorte temos, bodhisattva! Que sorte!

Em seguida, pegou uma xícara de porcelana decorada com flores, encheu-a até a metade e ofereceu-a a Sanzang, dizendo:

— Beba devagar, mestre. Para interromper a gravidez, bastará um pequeno gole.

— Eu não quero uma xícara! — protestou Bajie. — Preciso do balde inteiro!

— Você tem certeza do que está dizendo? — alertou a anciã. — Se beber o balde todo, a água dissolverá até o estômago e os intestinos.

Ao ouvir isso, Bajie ficou tão assustado que não ousou dizer mais nada e tomou apenas meia xícara. Num piscar de olhos, ambos sentiram uma dor insuportável no ventre, acompanhada de cólicas tão fortes que parecia que iam desmaiar. Em seguida, ouviram-se quatro ou cinco roncos  estrondosos, como se algo estivesse se rompendo dentro deles. Bajie não conseguiu aguentar e começou a expelir urina e fezes como se fosse uma fonte. O monge Tang também sentiu uma necessidade urgente de aliviar-se e, envergonhado, pediu para ser levado a um local mais reservado.

— Mestre — disse o Peregrino —, não é bom sair para um local onde haja corrente de ar. Se for exposto ao vento, há risco de contrair alguma enfermidade pós-parto.

Sem perder tempo, a anciã trouxe dois penicos, permitindo que eles se aliviassem à vontade. Após várias contrações seguidas, a dor começou a diminuir, e seus ventres foram encolhendo gradualmente, indicando que o feto de carne e sangue havia sido completamente dissolvido. As parentes da anciã prepararam um pouco de arroz e o serviram para que recuperassem as forças perdidas durante o "parto".

— Eu, senhora — disse Bajie —, tenho um estômago forte e não preciso de mais comida. O que eu realmente gostaria é que aquecessem um pouco de água para que eu possa tomar um banho.

— Está louco? — repreendeu-o o Monge Sha. — Não pode tomar banho!  Se entrar em contato com água dentro de um mês após o "parto", poderá ficar gravemente doente.

— Mas eu não dei à luz nada — protestou Bajie. — No máximo, sofri um aborto. Por que tanto temor? Agora só preciso é de um bom banho.

A anciã correu alegre para esquentar um pouco mais de água, permitindo que lavassem ao menos as mãos e os pés. O monge Tang comeu então duas tigelas de arroz, enquanto Bajie devorou mais de quinze e ainda pediu mais.

— Não coma tanto, por favor — aconselhou o Peregrino, rindo dele. — Caso contrário, ficará com uma barriga tão grande quanto um saco cheio de areia.

— Não se preocupe — respondeu Bajie. — Felizmente, não sou uma porca, então não preciso me preocupar com o tamanho da minha barriga.

Apesar disso, as mulheres foram preparar um pouco mais de arroz. A anciã então se voltou para Sanzang e perguntou:

— Poderiam me dar a água que sobrou?

— Não quer beber mais? — perguntou o Peregrino a Bajie.

— Não — respondeu Bajie. — A dor de estômago já passou, e o "parto" já terminou. Confesso que nunca me senti tão bem quanto agora. Para que beber mais água?

— Já que estão bem — concluiu o Peregrino —, vou entregá-la à família desta senhora. Para nós, ela não tem mais utilidade.

A anciã agradeceu ao Peregrino e despejou a água restante em uma jarra de porcelana. Em seguida, correu para escondê-la no jardim dos fundos, não sem antes advertir seus familiares:

— Esta água servirá para cobrir as despesas do meu funeral.

Todas as mulheres da casa, tanto as mais jovens quanto as mais velhas, estavam radiantes de felicidade. Rapidamente, prepararam uma refeição vegetariana e colocaram a mesa. Dessa forma, o monge Tang e seus discípulos puderam recuperar suas forças. 

Ao amanhecer do dia seguinte, agradeceram à anciã e sua família e partiram da aldeia. O monge Tang montou em seu cavalo, o Monge Sha carregou a bagagem, Zhu Bajie segurou as rédeas e o Grande Sábio Sun seguiu na dianteira, abrindo caminho. Não poderia ser diferente: uma vez que a boca foi lavada de seus pecados e a ilusão do mundo foi dissipada, o espírito foi purificado e o corpo foi fortalecido.

Não sabemos que tipo de perigos enfrentaram ao chegar à capital. Quem quiser descobrir, deverá ouvir as explicações que serão dadas no próximo capítulo.


CAPITULO LIV EM BREVE ...

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Notas do Capítulo LIII
  1. O primeiro voto, "ben-yüan", refere-se à pureza essencial do estado búdico;
  2. O termo sabedoria, ou "sambhodi", alude à onisciência de Buda. Em algumas ocasiões, como neste caso, designa todo o corpo de doutrinas budistas;
  3. Segundo o historiador Hsüan-Tsang, a sudoeste do reino de Fu-Lin existia uma ilha onde se estabelecera o chamado País das Mulheres do Oeste. Como nenhum homem vivia entre elas, o senhor de Fu-Lin enviava anualmente um grupo de homens para que pudessem procriar;
  4. Em chinês 如意真仙 (Rúyì Zhēnxiān);
  5. Wen era um dos Quatro Grandes Marechais Celestes.


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:

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Ruby